O Uso da Solução de Ringer-Lactato como Líquido de Reposição em Cirurgia


Created on 09 Mar, 2020
Last Update on 16 Jun, 2022
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A solução balanceada de eletrólitos (Ringer com lactato) apresenta inúmeras vantagens, tais como: hidratação eficiente, preposição eletrolítica adequada, manutenção da volemia cuja expressão é uma diurese satisfatória. Admite-se mesmo que numa fase inicial o sangue perdido possa ser reposto por quantidade igual de Ringer com lactato.

A técnica utilizada para reposição em grande cirurgia é inicialmente 500 ml de glicose a 5%, com a finalidade de prover um aporte calórico, seguindo-se infusão de Ringer com lactato, 10 ml/kg nas primeiras horas, transfundindo-se sangue total, quando a perda é superior à 700 mil, e continuando-se paralelamente com infusão de Ringer com latcato durante todo o tempo operatório.


A água e os fluídos do organismo se distribuem funcionalmente em dois compartimentos: o intracelular e o extracelular; este é subdividido por sua vez em espaço intravascular e espaço intersticial. Enquanto a célula permanece intacta, sua composição em água e eletrólitos se mantém constante, sujeita apenas a alterações mínimas compatíveis com a vida e com sua função, principalmente pela permeabilidade seletiva da membrana celular que mantém uma divisão desigual de eletrólitos entre os dois compartimentos. Os líquidos dos espaços intravascular e intersticial, por sua vez, menos seletivos em suas variações apenas mantém sua constância pela impermeabilidade da membrana capilar ao plasma, mas em presença de hemorragias ou traumatismos mais ou menos extensos podem ocorrer grandes modificações nos volumes líquidos entre estes dois espaços.

Funcionalmente o espaço intersticial, contendo aproximadamente 20% da água do organismo (cerca de 15 litros num homem de 75 kg), representa o maior compartimento que pode ser mobilizado rapidamente durante hemorragias ou traumatismos. O fluído deste compartimento, da natureza de um transudato[21] deve ser reposto por solução de composição semelhante, para que possa passar livremente do espaço vascular para O intersticial.

Shires[4] observando 18 pacientes admitidos em choque hipovolêmico por hemorragia, realizou estudos com radioisótopos que mostraram: para uma perda média de 1.131 ml de sangue houve uma redução do volume plasmático de 786 ml (19,3%), de 363 ml do volume globular (187%) e de 5.200 ml de líquido intersticial (31%). Este déficit de fluído extra-vascular não constitui perda para O exterior; trata-se isso sim, de um fenômeno de redistribuição, pois parte do fluido se encontra nos tecidos adjacentes ao local do trauma, manifestando-se como edema local, parte está sequestrado no leito esplâcnico, na parede ou na luz intestinal e parte está em capilares sem circulação por abertura de curto-circuitos arteriovenosos.

Embora estes métodos de medida tenham uma limitação em sua praticabilidade apresentam também validade em seus resultados uma vez que medem espaços fisiológicos, dinâmicos, pouco se conhecendo do destino dos radioisótopos com o passar do tempo, como já foi criticado[1,2,15,20]. De forma sucinta, entretanto, pode-se afirmar, que há uma perda de fluído do espaço intersticial concomitantemente com o trauma cirúrgico e a hemorragia. O fluído intersticial, extravascular pode migrar para dentro do território vascular a fim de recompor a volemia diminuída, pode ocupar grandes volumes em tecido traumatizado ou onde haja alterações da permeabilidade capilar de qualquer natureza (tóxica, química, infecciosa, endócrina, etc.). Este fluído assim sequestrado não é utilizável e fica inacessível a outros compartimentos. Funcionalmente trata-se de outro compartimento ou “terceiro espaço”.

Na reposição de fluídos o ponto mais importante é a compensação da volemia seguido da manutenção da osmolaridade, por eletrólitos, calorias e da capacidade de transporte de oxigênio.

Os trabalhos experimentais de Shires e col. a partir de 1960[17,18,19] abriram novas perspectivas no tratamento da hemorragia aguda associada ao trauma cirúrgico, com o uso de solução eletrolítica balanceada, particularmente a solução de Ringer com Jactato, também denominada solução de Hartmann ou dos três cloretos (sódio, potássio e cálcio).

Já tem sido demonstrado[4,15,19] que após uma hemorragia há, não só há perda de glóbulos e plasma, mas também de líquido do espaço intersticial, o que pode ser verificado usando técnicas de diluição com radioisótopos: o S35 para determinação do espaço intersticial. I31 (RISA) para determinação do volume plasmático e as hemácias marcadas com Cr51, para determinação do volume globular.

Estudos experimentais em animais[20] e no homem[14,16,21,22] demonstraram a necessidade de administrar soluções balanceadas (Ringer-lactato) na terapia da hemorragia trans-operatória e até mesmo procuraram provar à superioridade da infusão de Ringer-lactato em volume adequado (3 a 4 vezes o volume de sangue perdido) sobre a transfusão de sangue em volume igual ao perdido. Apesar de se necessitar muitas vezes repor parte do sangue perdido, tornou-se evidente também que a infusão de soluções balanceadas, como a de Ringer-lactato, eram necessárias para repor as perdas simultâneas do espaço intersticial.

A solução de Ringer com lactato contém 132 mEq/1 de sódio, dos quais aproximadamente, 30% estão combinados ao jactado (28 mEq/1) e o resto ao cloreto (112 mEq/1). Olactato se metaboliza como bicarbonato e assim é um receptor de protons. A solução contém ainda 4 mEq/1 de potássio e 4 mEq/1 de cálcio. É uma solução isotônica, barata, muito fácil de ser adquirida e de uso corrente, cuja infusão não causa reações colaterais e não agrava distúrbios eletrolíticos porventura existentes anteriormente.

Terry[21] e Trudnoswski[22] demonstraram clinicamente a vantagem da infusão per-operatória do Ringer-lactado em operações ginecológicas, infundindo volumes de 1.500 a 2.000 ml, reduzindo o número e gravidade dos episódios de hipotensão e taquicardia, diminuindo também significativamente o uso de transfusões de sangue, especialmente nos casos de perdas sanguíneas maiores. Isto significa não só uma economia de sangue, mas uma menor incidência das reações e complicações devidas às transfusões de sangue. Ao mesmo tempo, observaram, que a diurese se mantinha acima de 20 ml/hora durante a cirurgia. A evidência de uma reposição volêmica adequada inclui uma diurese satisfatória no período pós-operatório, mantida acima de 40-50 ml/hora.

Loewenstein[7] e Moss[12], bem como Boba[2] realizaram estudos experimentais em cães provocando uma hemodiluição acentuada através de hemorragias graduadas e reposição com Ringer lactato, até a um hematócrito de 10%, com sobrevida dos animais.

Rigor e col.[14] administraram apenas solução de Ringer lactato numa série de pacientes cirúrgicos que perderam mais de 1.000 ml de sangue assim distribuídos: 86 perderam 1.000 a 1.500 ml, 10 perderam de 1.500 a 2.000 ml e 4 além de 2.000 ml. Naturalmente houve queda do hematócrito, do nível de hemoglobina e do nível de proteínas, porém sem complicações para os pacientes. Foi-lhes administrado um litro de Ringer lactato na primeira hora de cirurgia, independente da perda sanguínea e cada ml de sangue perdido foi reposto com 2 a 3 ml de Ringer lactato. A diurese destes pacientes foi excelente. Apenas 4 pacientes necessitaram de transfusão pós-operatória, um por hipotensão persistente e três por sangramento pós-operatório .

Rush e col.[17] confirmaram estes resultados clínicos, controlando o hematócrito. Quando este atingia 28% começavam a administração de sangue. Nenhum paciente que perdeu 1.000 ml ou menos tomou transfusão de sangue. Perdas de até 2.000 ml puderam ser compensadas em pacientes com hematócrito inicial acima de 40%. apenas com solução balanceada, sem aumento de morbidade ou tempo de hospitalização.

Lorhan[8] demonstrou em animais, que a eficácia da solução de Ringer lactato no tratamento do choque hemorrágico experimental (pela técnica de Wiggers) pode ser devido ao preenchimento do déficit funcional de sódio, não atuando a solução como simples expansor do plasma. Recomenda a reposição com Ringer lactato de 4 vezes a do volume do sangue perdido (em sangue).

Williams[23] demonstrou experimental e clinicamente a vantagem da solução de Ringer Jactato em vez de plasma em casos de obstrução intestinal.

Breivic[3] num grupo de pacientes submetidos à gastrectomia, demonstrou a superioridade da infusão de 500 ml/hora de Ringer lactato sobre o soro glicosado isotônico, comprovando a diurese satisfatória e a ausência de sinais evidentes de deficiência de hidratação no período pós-operatório, nos pacientes pertencentes ao primeiro esquema.

O entusiasmo dos autores como Rigor[14] Rush[17] e Dillon[5] foi levando a certos excessos, como por exemplo Makenzie[9] que administrou 2 litros de Ringer lactado em uma hora, antes ou durante a anestesia, para demonstrar que o ato operatório era sempre acompanhado de um estimulo antidiurético, mesmo em presença de hiperhidratação.

Moore e Shires[11] num artigo clássico apelam vara o bom senso e a moderação. Há realmente uma redução dos fluídos do espaço intersticial durante o choque hipovolêmico. A compensação desta perda deve ser feita com cuidado e preferivelmente com uma solução eletrolítica balanceada, do tipo da de Ringer lactato, evitando a hipercloremia que pode ser produzida pela infusão de solução de cloreto de sódio a 0.9%, soro fisiológico ou a hiponatremia da infusão da glicose isotônica. Também estas soluções não representam substitutos do sangue, que pode ser necessário no tratamento do choque hemorrágico, mas, isto sim, uma terapêutica adequada para repor as perdas de líquido intersticial abundante em presença de trauma cirúrgico extenso.

Atualmente[13], aceita-se como razoável a reposição do sangue perdido, inicialmente por igual volume de solução de Ringer lactato e quando a operação ultrapassa de uma hora administraram-se 10 ml/kg por hora de solução de Ringer lactato, suplementando-se a perda sanguínea, na medida de sua perda, com sangue total, em quantidade correspondente a perdida. Sendo assim, as pequenas perdas de sangue não são respostas, administrando-se geralmente na primeira hora apenas 500 ml de solução de Ringer lactato, a não ser que haja logo de início um sangramento apreciável.

Marx e col.[10,24] recomendam a infusão de 1.000 ml de Ringer lactato em glicose a 5% em 20 minutos, antes da administração de raquianestesia para a operação cesariana.

Herbert e col.[6] admitem que o jejum pré-operatório no paciente pediátrico geralmente é excessivamente longo (8 ou mais horas) e o paciente chega na sala de operações com tendência à acidose e desidratação. Recomenda a infusão de 3 a 7 ml/kg de uma solução de Ringer lactato em glicose a 5% e usa no pós-operatório solução balanceada em glicose a 5% na base de 2.000 ml/m²/dia. No pré-operatório de cirurgia alargada administra. ainda 1.500 ml/m²/24 horas (5 ml/m²/h) de solução balanceada (Normosol em glicose a 5%).

Nós costumamos realizar a reposição volêmica hidroeletrolítico-calórica durante a grande cirurgia da maneira descrita a seguir. Inicialmente são infundidos 500 ml de glicose a 5%, com a finalidade de prover um aporte calórico, evitando a cetoacidose do jejum, por vezes prolongado de várias horas e diminuindo também a depleção do glicogênio hepático. O suprimento de necessidades metabólicas reduz ainda o catabolismo protéico e diminui o equilíbrio negativo de nitrogênio do pós-operatório. A água livre administrada com a glicose auxilia a excreção renal e contribui para substituir a perda insensível. Sabe-se também que a anestesia do paciente hipoglicêmico pode causar hipotensão arterial. Além disso, a depleção da reserva de glicogênio hepático aumenta a sensibilidade a hepatotoxinas e pode contribuir para aumentar uma eventual lesão hepática por hipoxia, hipotensão arterial, hipovolemia ou por anestésicos. Embora a glicose administrada não satisfaça todas as necessidades calóricas do dia operatório (1.500 a 2.500 calorias. conforme o peso do paciente) a quantidade total de 75 a 125 g administradas nas 24 horas de pós operatório pode diminuir apreciavelmente a mobilização das reservas de glicogênio.

Logo após, segue-se infusão de solução de Ringer lactato numa velocidade entre 10 e 15 ml/kg/h durante a primeira hora do ato operatório a não ser que haja alguma razão para apressar o gotejamento. Caso ocorra perda sanguínea de grande monta (acima de 700 ml) usa-se transfusão de sangue continuando-se porém com a infusão de Ringer lactato para compensar a saída de líquido extracelular que deixou o volume circulante efetivo, sequestrado sob a forma de edema para áreas traumatizadas do “terceiro espaço”. Após a primeira hora, em geral, pode-se diminuir a infusão para menos de 10 ml/kg/h, a não ser que continue a perda sanguínea abundante quando se continua a reposição com maior velocidade. O principal fator da reposição será a manutenção de um débito urinário acima de 50 ml de urina por hora, continuado durante o transcurso operatório.

De um modo geral este procedimento prossegue no dia da operação até um total entre 2 a 3.000 ml de água contendo as quantidades necessárias de glicose e eletrólitos, a não ser que seja necessário um determinado tipo de líquido específico.


Bibliografia

  1. Albert S N, Shibuya J, Economopoulos B A, Cuevo N, Varrone E V, Albert C A - Simultaneous measurement of erythrocyte, plasma and extracellular fluid volume with radioactive tracers Anesthesiology 29:908, 1968.

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